segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Thanksgiving

Ontem foi dia de ação de graças aqui nos Estados Unidos. Um feriado deveras estranho e um dos mais importantes da cultura norte-americana, onde toda família se reúne para jantar e agradecer o que acha que devem agradecer.
Tive a felicidade de ser convidado para um jantar na casa de um amigo brasileiro que também mora aqui. A sua família o estava visitando e ele resolveu fazer um jantar na casa dele. Mais estranho que o jantar propriamente dito é a aceitação de um feriado tipicamente americano por brasileiros refugiados no exterior. Tudo é muito brega aqui nos EUA, como deu para se perceber, e nada é mais brega do que uns brasileiros nada a ver comemorando um feriado nada a ver. Mas a breguice tem um espaço nos nossos corações, doa a quem doer. Ela é sempre invocada nesses momentos de comoção coletiva. E convenhamos, não é nada mal se reunir para um banquete com direito a um peru gigante, purê de batata, gravy, apple pie, stuffing, muito vinho, muita cerveja.
Antes do jantar todo mundo, em fila, foi colocado no holofote a dizer o que gostaria de agradecer nessa data. Após ouvir muitos agradecimentos à família, à saúde e à comida na mesa, foi minha vez de dizer algo. Nessas horas o nervosismo sempre atrapalha, ter que fazer um mini discurso na frente de pessoas que eu nem conhecia (família e amigos do meu amigo) e ainda tendo que dizer em inglês; porque apesar de 99% da mesa ser brasileira, tinha um russo que é roommate do meu amigo e não entendia bulhufas de português (noite muito agradável ele deve ter tido com todo mundo falando português na festa). Sucintamente falei um pouco do que eu estava pensando nos últimos dias, que eu gostaria de agradecer à sorte de ter nascido em um ambiente que me deu a oportunidade de ter escolhas na vida, coisa que muita gente no Brasil simplesmente não tem. A escolha tem um preço muito alto nesse nosso modo de vida atual, e é impensável que em pleno 2014, século 21, ainda tenhamos que contar com a sorte para poder ter a possibilidade de escolher o rumo das nossas vidas. Meu curto discurso foi bem recebido. Vi várias expressões de concordância, principalmente do Russo, que pouco tempo antes tinha me dito que tinha praticamente fugido da Rússia depois da queda da União Soviética. Dizia ele que durante aquele época, a vida era muito boa, mas que depois que o capitalismo se instaurou os rachas na sociedade ficaram insuportáveis e sendo cristão ele ficou encurralado por uma legião de muçulmanos que se instalaram na sua região. A fuga aos EUA foi sua escolha, mas uma escolha intragável. Há 17 anos por aqui, o que ele mais quer é voltar para lá.
Estavam todos ali por escolha. Escolha que lhes foi possível por uma condição que lhes propiciou isso, por mérito pessoal ou por simplesmente ter nascido assim. Eu era uma das pessoas que a escolha veio não por mérito próprio, mas por mérito dos meus pais e avós que lutaram muito para que eu tivesse uma condição de vida muito superior à média brasileira, que colocaram na cabeça que educação era de suma importância e que assim me deram as ferramentas para tomar decisões.
Mas voltando para casa me peguei pensando numa situação que tinha ocorrido comigo alguns dias atrás que colocou em xeque meu discurso. Estava eu no Starbucks (minha segunda casa, já que na minha casa não tem internet e eu tenho usado a deles) e entrou e sentou do meu lado um mendigo, roupas esfarrapadas, descalço, com os pés totalmente encardidos. Um mendigo que chamaria atenção da mídia tupiniquim, pois era loiro de olhos azuis. Estou um pouco acostumado com a situação, pois a quantidade de loucos dormindo na rua aqui em Los Angeles é impressionante, em todo quarteirão tem essas pessoas, falando sozinhas, rindo à esmo, com seus carrinhos de supermercado cheio de tranqueira perambulando pelas ruas.
Esse mendigo se sentou ao meu lado e ficou ali, na dele, falando consigo mesmo, se perguntando onde tinha uma loja de tênis por ali, pois precisava comprar um, já que o seu estava desgastado - lembrando que ele estava completamente descalço. Eu evito encarar esse pessoal porque não sei se eles podem ser violentos ou não, mas aconteceu. Olhei para ele e ele começou a falar comigo. Puta vergonha. Não sabia o que fazer. Ignorar é sempre o melhor remédio, mas po, ignorar um cara que tá do seu lado é muita frieza, não consigo ser assim. Ele falou algo que não entendi e repetiu a pergunta da loja de sapato. Disse a ele que tinha uma bem grande ali perto. Ele então começou a soltar umas palavras ininteligíveis, um barulho estranho. Parecia japonês, mas minha falta de conhecimento não me permitia confirmar. Ele falava tudo isso numa chave irônica, como que tirando uma da minha cara. Será que ele tá falando japonês mesmo? Não estava acreditando muito, era um mendigo afinal de contas. Mas aí, do nada, ele começou a falar algo que eu entendia. Ele tava falando nomes de diretores de filmes, Thomas Vinterberg, Lars Von Trier. Ele me perguntou se eu gostava deles. Tive um segundo de paralisia. Falei que sim, que dança no escuro era um dos filmes mais impressionantes que eu já tinha visto. Ele concordou e balbuciou as palavras Festa de Família e os Idiotas. E continuou a falar a língua estranha que parecia japonês. E agora eu até começava a acreditar que era japonês mesmo. Porra, tinha acabado de discutir Dogma 95 com um mendigo! Tudo era possível. E o pior é que ele parecia tirar um sarro absurdo da minha cara, ele ria e falava em “japonês”. Nessa hora eu já estava saindo da loja porque tinha outras coisas para fazer e só disse tchau, devidamente respondido.
Escolha. Lembrei também de um documentário que eu trabalhei um tempo, em que entrevistamos moradores de rua e perguntávamos porque eles estavam na rua. A surpresa veio quando a esmagadora maioria dizia que estava lá porque queria, porque não se dava bem com a mãe, com o padrasto, com a avó, porque curtia a liberdade da rua. Alguém me disse aqui que a maioria desses loucos que moram na rua aqui nos EUA são ex-militares, que voltam da guerra e perdem a cabeça totalmente.
Quando fiz meu discurso sobre a possibilidade da escolha, pensei nessas pessoas que não tem nada e assim, nenhuma oportunidade para decidir seus rumos, e agora eu estava me contradizendo (mais uma vez, coisa que já até aprendi a conviver, as minhas imensas contradições).  A escolha deles era viver sem ter muitas escolhas, ou mesmo a escolha de viver sem ter que ficar escolhendo entre tudo o que esse sistema oferece. 
No meio desse feriado totalmente brega, comemorado bregamente com um bando de brasileiros em Los Angeles, acabou me vindo a mente a maior breguice de todas, mas que não conseguia tirar da minha mente, a crítica a esse Sistema que nos oferece e vende escolhas, mas que na verdade nos dá somente uma: se insira ou enlouqueça.
E que venha o Black Friday!